segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Sem comentários!


As famílias desaparecem porque nelas existe sempre alguém que quer ser o mais forte e mais esperto!
Normalmente esse membro aparece não por parentesco, mas por afinidade.
Naquele mês de Março o tempo corria frio e húmido e por vezes o sol era insuficiente para aquecer aqueles que, por força da sua atividade, iam e vinham nos campos, limpando, as terras para as grandes sementeiras.
Naquela família a pessoa mais querida foi chamada a contas pelo Salvador e, surpreendentemente partiu sem se despedir de toda a sua família. Apenas a companheira de tantos anos de alegrias e também sofrimentos esteve sempre à cabeceira, nos pouquíssimos minutos que durou a sua partida. Dessa família não restam muitos herdeiros, mas os suficientes para não se entenderem e muito menos se tolerarem.
Um certo dia, sem que nada o fizesse prever, um dos "apêndices" resolveu impor a sua vontade, apesar de não existir qualquer motivo para tal, impondo um determinado comportamento. Naturalmente que os visados não se opuseram, mas também não satisfizeram a vontade do dito. Palavra puxa palavra e a coisa azedou a tal ponto que, inesperadamente, o tal apêndice saiu como touro acabado de espicaçar em direção a uma pessoa da família que havia acabado de fazer a sesta. Como se pode imaginar o recém chegado à cena não compreendeu aquele ato felino e mal teve tempo para se segurar nas pernas, porque foi literalmente socado, sem mais nem menos. Ainda assim, sendo tudo uma surpresa desagradável, ripostou e fez com que o temerário intruso levasse também nas ventas!
Meteram-se saias pelo meio e a contenda acabou por ali felizmente, mas por pouco não dava para o torto. E a família separou-se definitivamente. Não havia mais nada a fazer senão lamentar tão triste episódio. Mas mais valia o afastamento que qualquer dia alguém ir para o hospital. Não seria o primeiro caso!
Passou algum tempo de silêncio total até que um dia há nova investida, desta feita por outro membro da família também "emprestado" a propósito da divisão de um terreno. E tudo voltou ao início! Palavra puxa palavra e só não acabou em porrada porque uma das lesadas era muito pacífica.
O mais curioso é que nem num caso nem noutro, apesar de se tratar do mesmo assunto, os "apêndices" lucraram alguma coisa, muito embora tenham pensado ter levado a melhor.
Todavia o que restou da família é um enorme e incrível vazio que nada nem ninguém pode colmatar.
Tal qual um devastador oceano que pela força e persistência acaba por minar as rochas da costa, assim alguns "apêndices" são suficientemente maus para devastar uma família.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Pontos de vista diferentes...


A vida é como uma janela! Dela podemos visualizar muitas coisas ou coisa nenhuma!

Tinham passado mais ou menos dez anos desde que se conheceram. Tinha sido "amor à primeira vista", não se sabendo muito bem se era, de fato, amor ou apenas o apelo a uma união, porque um já cansado da má vida e outra sedenta de uma vida boa, desejavam mudar.
Casaram e viveram como a maioria dos casais da época. Pouco sexo, muita discussão e nenhuma razão.
Nasceram dois filhos dessa união e tardiamente veio outro. Ainda os primeiros eram crianças e a união tornou-se insustentável. Faltava quase tudo: amizade, companheirismo, cortesia, fidelidade, respeito...
Era inevitável a separação, mas na hora da decisão final surgiram os imprevistos. Estes, intransponíveis: não havia apoio familiar, ninguém queria "meter a colher", não era justo, não era bonito, os pais dela não a queriam divorciada, os dele já não existiam, faltavam recursos econômicos e era fatal como o destino que, assim, tinham que se gramar a vida toda.
Lembravam as promessas de casamento: amar, ser fiel, até à hora da morte!!
Lindo, mas inconcretisável. Só uma de duas soluções era possível nesse quadro familiar: deixar tudo para trás ou aguentar até onde fosse possível.
E foi o que aconteceu até ao desaparecimento de um deles.
Era bom, muito bom, que durante esses longos e infernáveis anos de vida em comum, alguma coisa fosse possível alterar. Mas não foi. Aguentaram, é o termo. Valeu a pena? Claro que valeu! O que seria da família se qualquer deles desistisse do contrato? A ruína, a falência familiar ou simplesmente uma enorme dor de não terem inventado outra solução!
A "janela" estava aberta mas a "paisagem" era monótona. Era uma perspetiva! Podia ser outra. Qualquer outra. Tinham que inventar uma "nova paisagem". Por momentos foi possível, com recurso a muita coragem e também sacrifício.


quinta-feira, 12 de maio de 2011

Há 38 anos!

Eram umas cinco da tarde, mais ou menos. Estavam sentados na sala de espera do Hospital da Trindade, os futuros pais, os cunhado e irmã da parturiente, e a parteira.

-Então? Não sentiu nenhuma contração, enquanto estivemos aqui? Disse a parteira com um sorriso à futura mãe.

- Não. Nada!
- Temos que provocar o parto. Essa criança já deveria estar cá fora!

Sorrisos...

A parteira olhou para o seu relógio de pulso e passou-lhe uma leve preocupação pela fisionomia.

- Vamos para a sala de partos! Sentenciou.

Os homens disseram que iam até ao clube enquanto a criança não nascesse. Caso fosse necessário viriam de imediato. Mas ia correr tudo bem, por isso poderiam ir descansados.

Saíram sorridentes.

A sala de partos do hospital era igual a todas as outras. Branca, com uma cama de ferro branca, uma mesa branca e só o suporte do soro, tinha uma armação metálica. Era mesmo um quarto de hospital.
A parteira preparou a futura mãe e colocou-lhe na veia da mão esquerda uma agulha ligada a um tubo. O soro começou a cair gota a gota. Muito lentamente... A parteira disse que ia ao hospital do Terço ver outra parturiente, enquanto o soro fazia efeito.

A futura mãe inquietou-se.

- E quando volta? Suspirou a mãe.
-Não demoro nada. A outra senhora também está com soro há mais de duas horas e provavelmente ainda não nasce para já.
- E se me acontece qualquer coisa? Insistiu a mãe.
- Nah! Não está sozinha. Tem aqui a sua irmã e se for necessário venho a correr. Não se preocupe! Preparou-se para sair... Voltou atrás para dizer:
-Descanse! O soro leva tempo a atuar!!

Ficou relaxada, mas inquieta. Bem, sempre tinha a sua irmã...Ao menos isso!

Respirava profundamente, sentindo cada movimento do seu corpo e interiorizando os movimentos do bebé que ia nascer. A parteira já tinha saído há minutos. Não teria tempo de sair do hospital.
A primeira contração forte surgiu, sem dor, sem medo, espontaneamente como se a criança estivesse pronta para nascer depressa, muito depressa! Tão depressa que a futura mãe disse aflita para a irmã que fosse a correr chamar a parteira. Já não havia muito tempo pela frente.

A parteira estava à porta prontinha para abandonar o local e não acreditou no que ouvia! Era impossível que o soro já tivesse atuado tão rapidamente. Perante a insistência da irmã, voltou à sala e foi verificar o estado da parturiente.

Nesse mesmo momento surgiu a segunda contração e de tal modo forte que a mãe só teve tempo de dobrar os joelhos e apoiar-se na barra da cabeceira da cama, com força. A parteira só teve tempo para passar vaselina pelas mãos e alargar num movimento rápido de rotação a vagina para facilitar o nascimento.

À terceira contração, nasceu! Um rapaz com 57 cms e 4,400 Kgr de peso.
Após o "apgar" a parteira colocou o bebé sobre o peito da mãe, que com uma enorme curiosidade, "inspecionou" o seu filho, tal qual uma fêmea de quatro patas. Era perfeito, mas o tempo excessivo de gestação fê-lo ficar como um velhinho, todo enrugado. A mãe ficou preocupada, mas a parteira disse que era normal e em pouco tempo teria uma pele lisinha e saudável.

Aquela criança nascera em 15 minutos e foi um parto sem dor. Nasceu tranquilamente.
Voltou para o quarto com o seu bebé e lá ficou até ao dia seguinte. Durante a primeira noite o seu filho sentiu imensa fome o que o fez chupar toda a noite no seu dedo polegar, com um ruído muito característico.
De madrugada sentiu fortes dores no baixo ventre e tinha uma vontade enorme de urinar, mas não saia nada. Chamou uma enfermeira. Apareceu uma freira. Disse-lhe o que sentia e que não era normal. Mas a enfermeira/freira respondeu que podia ser normal. Qualquer resto de placenta ou indisposição intestinal...

O que se seguiu foi doloroso, muito doloroso. A dita enfermeira resolveu apertar-lhe o ventre. Ao fazê-lo de forma brusca e grosseira a mãe soltou o maior grito da sua vida. A dor lancinante parecia ter-lhe rasgado as entranhas.

O tempo passou e mãe e filho regressaram a casa. Ela vinha com o mesmo peso que tinha com a criança dentro da barriga e inchada de tal forma que quase não conseguia abrir os olhos.

O médico assistente foi a casa e não queria acreditar no que via. O diagnóstico era mau, muito mau. Ao fazer o toque verificou que tinha uma enorme infecção na uretra, responsável pelas dores e inchaço e, provavelmente, adquirida por negligência da parteira na hora do parto e pela falta de higiene no processo de expulsão do feto.

Foi medicada com Paraxine e Lasix. Mas as esperanças de melhoras eram remotas. Dado os dias que tinham passado não se sabia se aquele tratamento era o adequado.

A mãe olhou para o filho e pela primeira vez sentiu que podia estar seriamente em risco a sua vida e o futuro do seu filho. Pegou nele e colocou-o ao peito. Mamou serenamente e percebeu-se que o leite não o saciava. Recorreu-se a um suplemento de leite da farmácia.

Os dias passaram e os líquidos foram saindo lentamente. A medicação estava a fazer efeito e acreditou que se tratava de um milagre.
Preferia ter sentido as "dores" do parto!!

Uns dias mais tarde tudo voltou ao normal. Mãe e filho estavam bem, uma lutando pela saúde de antes e o outro lutando para viver, crescendo lindo e tranquilo.

- Afinal vou ter mesmo que te aturar!!! Não é desta que morro...E tu vê se te comportas como um homenzinho...sim?? Disse a mãe para o filho que parecia entender perfeitamente o que ouvia!

Aquele filho tinha sido tão desejado! Aos 12 meses foi batizado com o nome do avô paterno. Um homem que a morte levou ainda muito novo de ataque cardíaco. Era uma pessoa excelente. Nunca foi visto mal disposto, zangado ou a reclamar do que quer que fosse. Foi primeiro violino na Orquesta Sinfónica do Porto e toda a sua vida foi pautada pela seriedade e honestidade.
Foi um exemplo para muitas pessoas, pese embora não tenha sido seguido, como deveria ser, pelos que lhe eram mais próximos.

Foi há 38 anos, mas parece que foi ontem...







terça-feira, 29 de março de 2011

A Morte

Uma vez, muito tempo atrás, viu uma alma que não lhe parecia deste Mundo. Magro, olhos encovados, curvado sobre si, apoiado numa bengala, esperava pacientemente entrar para a Igreja e sentar-se como sempre no último banco.
Era visto todos os dias Santos, ao Domingo e sempre que cerimônias religiosas se realizavam na pequena igreja da aldeia onde vivia. Rezava muito e em todas as cerimônias usava um tercinho preto com uma medalhinha de lata com Nossa Senhora de Fátima.
Dizia com graça, que era para que Deus o recebesse contente!
Certo dia faltou à Missa do Domingo e a sua ausência obrigou a um murmurinho abafado entre as comadres da frente, que a todo o tempo olhavam para o lugar que ele, quase sempre ocupava, no dito banco de trás.
No fim da Missa alguém perguntou pela alma ausente e ninguém sabia o motivo da falta ao ato religioso.
Vivia só, com um cão de guarda, tão velho quanto ele e da família só se sabia que emigrara há muito tempo para o Canadá e nunca mais haviam regressado à aldeia. Por isso mesmo, aquela alma, tinha estampado no rosto uma profunda tristeza.
Passada uma semana, repara-se de novo a sua ausência na Missa e as outras almas começam a ficar preocupadas. Já haviam batido na porta da casa dele, mas ninguém respondera, nem o cão.
Foram falar com o padre que aconselhou a chamar uma entidade oficial para arrombar a porta da casa, caso ele não desse sinal de vida. Pois, podia ter morrido ou estaria doente e sem possibilidade de abrir a porta. Também podia ter ido a algum lado, ou estaria com alguém de fora. Sabe-se lá!
O melhor era ir ver o que se passava com aquela alma de Deus e aguardar por notícias.
A população resolveu seguir o conselho do padre e procuraram na Junta de Freguesia a pessoa indicada para ir ao local onde vivia o dito senhor. Foi o presidente que foi escolhido, porque na verdade mais ninguém havia para tal ato.
Chegados ao local, bateram na porta, chamaram, bateram palmas, atiraram pedrinhas à janela, de tudo foi feito para chamar aquela alma. Mas nada! Tudo num silêncio sepulcral.
Só havia um remédio: chamar a guarda porque o presidente da junta não tinha poderes.
E assim se passou mais um dia e entraram na segunda semana de ausência de corpo e de notícias do pobre.
O Senhor Guarda veio com um ferreiro para rebentar com a fechadura, caso fosse necessário.
E assim foi, como não havia resposta o melhor era mesmo arrombar a porta. E lá se abriu a dita. Chamando, lá foram entrando como ratos em cozinha fechada, em fila indiana, uns atrás dos outros, cagados de medo porque não adivinhavam o que iriam encontrar.
Entraram pela cozinha, primeiro compartimento da casa e nada! Passaram à sala, onde era recebido o Compasso pela Páscoa, e nada! Passaram às alcovas...vazias e arrumadas como se ninguém ali tivesse dormido nos últimos séculos.
Nada, mesmo nada! Onde se teria metido? Estranharam tal "sumisso". De repente alguém se lembra que poderia estar no campo atrás da casa...
Deixaram a casa aberta e como coelhos saíram à procura da alminha perdida! Mas no campo também não estava!
Há muito tempo que ninguém morria naquela aldeia e por isso há muito tempo que ninguém passava pelo cemitério. Seria possível ter ido para lá?
Tal coisa parecia descabida, mas na verdade ninguém podia adivinhar o paradeiro do homem e do seu cão. Sem parentes, sem ninguém só podia estar perdido...
Regressaram aos seus lares, pensativos, incrédulos com a novidade do desaparecimento raro de uma pessoa aparentemente sã física e mentalmente.
No dia seguinte toda a aldeia já sabia que o homem desaparecera. Alguém lançou mais confusão quando disse que se calhar tinha sido raptado ou levado por um "obni". O quê? Que raio é isso?. Mas ficou-se sem explicação.
E os dias foram passando sem que ninguém descobrisse o paradeiro daquela alma de Deus!
Poucos dias depois a Tia Maria morreu de velhice. O coveiro foi abrir a vala para ali ser enterrada.
Ao entrar no cemitério, reparou num vulto de preto jazendo no mesmo local onde seria enterrada a Tia Maria. Aproximou-se e reparou atônito que se tratava do homem desaparecido. Não aparentava ter morrido há muito tempo... Talvez um ou dois dias, no máximo.
Tocou os sinos como se de fogo se tratasse e num instante toda a aldeia se reuniu no adro da Igreja a perguntar onde era a desgraça...
A alminha do homem tinha partido também. Agora eram dois a enterrar e o cão também. A morte não é senão um estádio da vida, vem quando menos se espera e acontece em qualquer lado.


quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Os Passarinhos e os predadores

Ainda se sentia um frio de Inverno, mas toda a natureza gritava pela Primavera.
Meia dúzia de putos entre os cindo e os sete anos, preparavam-se para mais um dia de aventuras, descalços, cheios de fome, mas muito alegres e bem dispostos. Não havia muito por onde escolher. Ou jogavam às escondidas, à cabra-cega, à bola, ou iam fisgar os pássaros.
A única rapariga do grupo, perguntou:

- Fisgar os pobres pássaros? Para quê? Isso é alguma brincadeira?

A resposta não se fez esperar. Ir aos pássaros não era propriamente um brincadeira, mas uma forma de matar a fome. Se algum deles caísse ao chão, sempre se fritava e mesmo que não desse para todos, algo mais se arranjaria.

A rapariga retorquiu:

-Sois mesmo xouxos. Os pássaros são tão pequeninos que nem dão para a cova de um dente.

Mas a maioria aprovou a matança e todos desenbolsaram a sua fisga. A passarada pressentiu o perigo e deambulou de galho em galho, rodopiando sem pressa sobre a copa das árvores. Era muito difícil fisgá-los em movimento.
Num incessante "olha ali", "aquele, aquele", "qual?", "não vejo", "onde está?", a pequenada corria como doidos de um lado para o outro. De vez em quando saía uma asneira de algum que quase acertou, mas não acertou!
E assim se passaram as horas e se aproximava o toque do sino da Igreja para anunciar o meio-dia. Todos paravam para rezar a oração respectiva. "O Anjo anunciou a Maria e Ela respondeu: Faça-se em mim, segundo a Tua Palavra. Avé Maria"
As fisgas não deram resultado pelo que optaram em mandar umas pedrinhas certeiras às árvores.

A rapariga interviu novamente:

- Se o meu avô vos vê, temos barulho pela certa. Ele não gosta que atirem pedras às arvores, porque se estragam as flores e depois não há frutos.

- Cala-te! Tu aqui não mandas nada. Se apanharmos um pássaro és tu que o vais fritar.

- Eu?!

- Sim tu. São as raparigas que cozinham, não são os rapazes...

- Mas eu nem sei arranjar os pássaros. Nunca comemos!

- Isso é comigo. Eu depeno. Tu fritas.

A rapariga não estava a gostar nada da situação. Felizmente que os seus avós chegariam tarde, porque tinham ido à Vila tratar de assuntos importantes, mas já estava a ver a confusão que ia dar todo aquele rancho de esfomeados a depenar os pássaros para depois serem fritos.
Não ia dar certo, por certo, mas tanta responsabilidade numa só rapariga enchia-a de brios!

E um pássaro caiu ao fim de muito tempo de pedradas voando em direção às copas.
O alvoroço da pequenada foi tremendo. Quem ouvisse pensaria que algum deles se tivesse aleijado. Eram gritos, risadas, pinchos de alegria. Só a rapariga estava triste ao ver o pobre passarinho inanimado no chão.
O mais voluntarioso e provavelmente o mais faminto pegou nele com jeitinho. Adivinhava-se um certo desgosto, mas a fome falava mais alto.
O bichinho foi depenado mal e porcamente, enquanto a rapariga punha ao lume a certã com um fio de azeite.

- E agora? Não leva sal? Não lhe tirais a cabeça...vai assim?

- Claro, come-se tudo!

A rapariga que não pensava sequer cheirar o petisco, fez um trejeito de vómito e o pássaro lá foi para cima do azeite a ferver. Salpicou, o que fez com que todos aqueles "abutres" saíssem de cima da certã.
Volta de um lado, volta do outro, o pássaro parecia que desaparecia, estava passado demais e quase esturricava. O matador disse para o tirar da certã que já se podia comer.
O cheiro do animal frito era enjoativo, tanto mais que ainda tinha as vísceras e a cabeça ensanguentada. Era um nojo.
Foi colocado num prato de barro e esperaram que arrefecesse. O atirador disse que o ia esquartejar para dar para todos. Primeiro tirou as pernas, depois o que restava das asas e quando abriu o pobre animal verificou-se que não tinha morrido da pedrada, mas de outra morte qualquer. O cheiro era uma mistura de caca e penas cozidas em azeite.

E lá começou a festança. Todos comeram, não se sabe bem o quê.
Não mataram a fome, mas sentiram a adrenalina de predadores.
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quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Natais diferentes

Antigamente não se falava de Pai Natal, árvore de Natal, brinquedos, prendinhas, bolo-rei, e outras coisas mais, porque era tempo de vacas magras.
....
Fazia um frio de arrepiar e toda a casa estava numa penumbra por falta de petróleo para o candeeiro. O calor não abundava e só na cozinha, parca de móveis, resistia uma lareira sempre a luzir. O tempo passava entre o calorzinho das brasas e as histórias do avô sobre príncipes e princesas, que viviam em castelos encantados, onde tudo era farto, bom e bonito.
O Natal aproximava-se e era preciso fazer o Presépio.
Na antevéspera ia-se à Corga, onde um curso de água cristalina jorrava devagarinho. Era a água mais pura que havia na aldeia. Fria como o gelo, consolava no Verão e só apetecia fervida e tépida no Inverno. À volta dessa fonte os muros que a circundavam estavam pejados de musgo verde escuro, com uns filamentos que pareciam pelos sedosos. Com uma faca velha levantavam-se "postas" de musgo que se acondicionavam numa caixa velha.
Era o primeiro trabalho e também o mais difícil naquela época de inverno rigoroso. Depois escolhia-se o melhor canto da casa para aí se construir o Presépio, com a Sagrada Família em destaque, mas onde não faltavam os reis magos, os pastores e as suas ovelhinhas, a Igreja, o lago com os patinhos, as galinhas, o burrinho e o moinho, tudo disposto segundo uma ordem que parecia descer do mais alto para o mais baixo, arquitetando-se um pedestal para o símbolo inequívoco do Natal: o Menino Jesus.
Era o Menino Jesus que depositava em cada casa e para as crianças em especial, um prenda que aparecia no dia de Natal, sempre depois da meia-noite, no sapatinho de cada criança. Só era possível colocar um sapato ou botinha, nunca o par, porque o Menino Jesus, tinha muitos meninos a quem distribuir as prendas. Estas eram, invariavelmente, e todos os anos, umas meias novas, um cachecol, um par de sapatos, uma camisola, um chocolate, um lencinho, um véu para a Missa, um agasalho qualquer, e outras peças necessárias e há muito solicitadas.
Nem se dormia, mas os mais velhos só colocavam as prendas depois da pequenada estar ferrada no sono.
Havia natais (quando a economia familiar o permitia), em que as crianças se surpreendiam: apesar de haver apenas um sapato na lareira para receber a prenda, o par que se encontrava debaixo da cama, tinha outra prendinha. Mais modesta, mas que alegria encontrar essa enorme surpresa!
Este acontecimento raro fazia com que se procurassem todos os sapatos, mesmo os velhos que já não se usavam, para ver se o Menino Jesus estava a "brincar" com os presentes das crianças, colocando-os nos sapatos arrumados noutros lugares.
Em nenhuma manhã dos 365 dias do ano se acordava tão cedo! Era a euforia completa! E por tão pouco, meu Deus!
Para agradecer ao Menino Jesus tanta generosidade, a Missa, a primeira do dia, estava reservada à pequenada, que nessas manhãs de Natal podiam saborear um pequeno almoço diferente, com a doçaria típica do Natal: os formigos, as rabanadas de vinho, a aletria e o pão-de-ló feito na padaria da aldeia.
O Presépio ficava no canto da sala até aos Reis e todos os dias era inspecionado não fosse algum musgo ficar amarelo, ou qualquer figurinha vinda de gerações anteriores, ter caído, ou algo que tirasse o "brilho" ao Presépio tão lindo!
E todos os anos se suspirava pelo Natal. Pelo Menino Jesus e pelo Presépio, uma cabaninha feita em madeira, palha e musgo, onde se colocava a Sagrada Familia, simbolizando a pobreza que o Messias prometido, havia escolhido para o seu Santo Nascimento.
Natais assim nunca mais aconteceram. Que saudade!

domingo, 19 de dezembro de 2010

Páscoa na aldeia


A Páscoa é uma das festas mais apreciadas naquela aldeia. Os familiares vêm beijar a Cruz e, quando o tempo o permite, ficam o dia todo para confraternizar, comendo, bebendo e mexericando na vida de toda a gente.
Numa dessas festas, lá muito para trás no tempo, o Compasso, ou a Cruz, como lhe queiram chamar, passava logo ao início da tarde e quem vinha para comer o repasto da Páscoa, já entrara na sala e se acomodava, porque o mês ia fresco.
Por toda a casa sentia-se um cheirinho a doces e a perfume barato que vinha dos visitantes. Mas o mais agradável era o cheiro da natureza lá fora a anunciar uma Primavera recheada de cor e alegria.
A tia Lola apresentava-se como uma verdadeira dama, ou não fosse ela modista e do Peso, onde gente muito fina e educada passava todos os verões nos hoteis locais. A sua pele da cara parecia seda e apresentava um aspecto ceráfico. Cheirava a pó-de-arroz e parecia sempre muito pálida e doente. Em contrapartida o tio e marido dela era uma "besta" na verdadeira acessão da palavra. Habituado à caça e à pesca a tempo inteiro e de controlador aduaneiro em part-time, fazia tudo à grande e à francesa, numa ostentação sem limites.
Era assim um casal esquisito. Ela muito franzina, ele um cavalo possante e empertigado. Tiveram um filho que cresceu entre os mimos da mãe e a rispidez do pai. Nem era carne, nem peixe. Mas não era mau rapaz.
Acontecia que a rapaziada toda junta só se lembrava de asneiras. Os primos andavam todos na mesma faixa etária, pelo que bastava que um se lembrasse de algo para rir, que todos desatavam a rir como tolos. Rapazes e raparigas eram iguais nas maneiras, na educação e também nas asneiras.
O avô desses "anjinhos" costumava tomar-se da pinga nesses dias de Páscoa, porque acompanhava a Cruz pela aldeia e se não ia com algum ofício, ia mesmo na procissão dos que gostavam de molhar a palavra.
Quando ele regressava a casa havia sempre barulho. O avô da pequenada tinha mau vinho e embirrava com tudo e todos. Também de nada valiam as palavras doces da avó, sempre conciliadora, sempre de paz, não gostando de dar nas vistas e muito menos ser falada na aldeia. É que ela sim, era uma pessoa muito querida e importante para a aldeia.
Ora o que se lembra a rapaziada de fazer ao avô no regresso a casa?
Encheram um copo de vinagre de vinho e colocaram-no bem à vista na mesa, ainda com algumas sobras de pão-de-ló e restos de aletria e arroz-doce.
Quando o velho entrou na sala mal disposto e a resmungar, quase caía porque se esqueceu de um degrau à entrada da sala. Depois de uma asneira conseguiu a custo endireitar-se antes de chegar à mesa. Foi-lhe dada uma cadeira, porque alguém reparou que se não se sentasse naquele momento, ia cair redondo no chão.
- O que há para beber?
Ninguém se mexeu. A avó respirou fundo e perguntou-lhe se não estava cansado. Que era melhor ir deitar-se. Que no dia seguinte era dia de trabalho...
- O que há para beber, já disse?
E um dos rapazinhos estende-lhe o copo de vinagre. Mete-o aos beiços e lá vai o liquido. Nem deu pelo cheiro a vinagre. Nem cuspiu o vinho. Nada! Só disse:
- Porra, o meu vinho "botou-se"!